sábado, 26 de dezembro de 2009

(Espera)^3

Entro e sento-me na primeira mesa que encontro vazia. Estão todas vazias no pequeno cubo de caixilhos redondos. "I'll take a quiet life, a hand-shake of carbon monoxide. No alarms and no surprises, please!". Isso mesmo. Uma boa música é um bom prenúncio. Isto só pode decorrer bem! Vislumbro um bater de asas e reconheço o holograma perfeito que ironicamente espero que me salve, compensando-me assim das vezes em que me tentou matar. O empregado, de bandeja assente de forma precária nas pontas dos dedos, dirige-se a mim perguntando-me o que desejo tomar. Pois bem, têm tabaco? O que me apetece verdadeiramente é nicotina em rolo... Bons cigarros, só na máquina. Está bem, se de facto não me faz o favor de os trazer, eu mesma irei busca-los. Que falta de cavalheirismo da sua parte! Gostaria também de paz, por favor, mas só com uma pedra de gelo e num copo alto, não nesses copos ridículos em que por vezes a servem. E já agora, se não se importar traga-me um cinzeiro, vou necessitar, aviso-o desde já. De outro modo não hesitarei em bater o cigarro para o chão e juro que não lamentarei por isso! O empregado regressa com o que lhe pedi. Muito obrigada. Bom, se tivesse uma tacinha com respostas seria absolutamente perfeito. Calhavam mesmo bem com a paz. Com certeza, trago já. O empregado traz então uma pequena tigela com respostas em tom de amendoim. Já tenho os cigarros. Bebo a paz mordiscando as respostas e contemplo o holograma fumando um cigarro. Imagem de calma que vejo, mas não sinto. A angústia enche demasiado esta sala, turvando a atmosfera.

Alguém colocou moedas na velha juke-box alterando assim a música: "They made a statue of us, And put it on a mountain top". Ao fundo vislumbro uma sombra que não compreendo. Chamo o empregado. Chegue aqui, por favor. O empregado vem com um sorriso sovina. Precisa de alguma coisa? Ironiza em puro esgar mefistofélico. Preciso, respondo sem tirar os olhos da sombra. Preciso que te sentes um pouco aqui comigo e que por um momento me deixes contar-te o que se passa. Preciso de racionalizar, desmontar, desmascarar, desenterrar e desconstruir até obter alguma clareza. Achas que te podes sentar? Ele olha para mim num misto de surpresa e desprezo. Não, desculpe, não me poderei sentar. De momento tenho muitos clientes.

A sala está vazia. Aqui dentro apenas reside angústia, um holograma, um vulto difuso e eu. Peço então gentilmente ao vulto que opte por se retirar ou, no caso de premente inevitabilidade da sua presença, que adquira contornos mais concretos, apenas porque não o compreendo ali, naquela forma. Peço à angústia que se dissolva porque, sejamos razoáveis, por favor: não faz sentido a sua materialização em contínuos socos no estômago. E por fim, respirando fundo, não tanto para encher os pulmões, mas sim para me encher de paciência, peço ao holograma que fique, que por favor não se vá embora. Contudo, o holograma esvoaça, escapando-se já para o parapeito da janela, onde saltita agora alegremente. A angústia mantém-se sob a forma de punho cerrado. E aquele vulto... Aquele misterioso vulto permanece difuso no seu canto, tentando a cada sonho expandir-se e ocupar toda a sala, em silenciosa orgia com a angústia. E eu... E eu permaneço sentada na minha mesa vazia, procurando sorver a paz e trincar as melhores respostas entre todas as incertezas, enquanto aguardo a Primavera, cigarro após cigarro...

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Alburrica

Mais uma noite. Pessoas em estilo festivo-decadente seguram copos plásticos de cerveja borbulhante, rodeando o portal para a outra dimensão. Confiante para lá me dirijo.Toco à campainha. No instante seguinte, surge o rosto conhecido do velho boémio que já esperava encontrar. Espécie de messias da noite, em calças castanhas e camisa branca de botões abertos, exibindo o típico cordel de ouro com crucifixo em metal correspondente. Pele curtida com textura de quem já viveu demais e no entanto, não tudo ainda. O cabelo, disciplinado por gel ou produto semelhante, permanece colado ao coro cabeludo enquanto patilhas mal orientadas se rebelam lateralmente. Cinquenta e tal anos, provavelmente bem bebidos, que se reflectem em micro-derrames nas bochechas encovadas. Sorrio e ele devolve-me um sorriso mais pequeno à laia de troco. Entro no pequeno átrio onde vislumbro um quadro espelhado. Olho discretamente ao passar, procurando a minha figura atrás do piroso contorno de uma mulher com vestes dos anos 20. Estou bem? Sim, pelo menos assim parece, num olhar rápido... É o que interessa e não tanto a confusão interior, que felizmente é invisível aos olhos da mulher dos anos 20, emoldurada em dourado rococó. Defronte à entrada está o DJ, alimentando os vários pares de tímpanos com o habitual punk-rock dos anos 70.

Entro e olho em redor, observando os presentes. Não está cá. O balcão é mesmo ao lado da mesa de mistura e é para lá que os meus pés se dirigem. Do outro lado, a barmaid do costume, com o seu visual retro em plena harmonia com a envolvente. Olhar misterioso, cabelo comprido e franjinha curta traçada a régua e esquadro. Túnica azul e calças justas perfilam-lhe a silhueta fina. Olha para mim num sorriso de "Olá, estás boa?" e pergunta-me: "O costume?". Sim, o costume, claro. Abrimos juntas a garrafa e a carteira realizando-se assim o ritual da transacção. Dançar. Sex Pistols, The Clash e outros dentro do género. A visão do mundo em rápidas sucessões de frames indica-me que tudo está bem. Bem demais. Sorrio, mas o olhar foge-me involuntariamente para a porta e continuo à espera.

Neste exíguo espaço, não há lugar para manchas de pessoas, pois todos são tão diferentes que conservam sempre a sua individualidade. Aprecio muito essa característica permitida em tão poucos lugares. Pequeno ecossistema underground confinado por paredes claustrofóbicas, tecto baixo, e longas noites de fim-de-semana, em que cada um tem um papel que é apenas seu. Continuo à espera. Chão de tijoleira envernizada. Paredes forradas a papel bordeaux e branco oferecem suporte a candeeiros de décadas passadas que contribuem com a sua meia-luz, tão importante na criação daquela atmosfera. Mais abaixo, bancos forrados a veludo bordeaux condizente com o papel das paredes, correm ao longo das mesmas, conferindo aconchego suficiente a malas, casacos e pessoas que se amontoam por ali, apenas interrompidos por suportes rectangulares para copos e cinzeiros. Pequenas mesinhas e bancos quadrados dispõem-se um pouco à frente, esperando receber copos e corpos meios. Dirijo o olhar à porta, desta vez voluntariamente, e continuo à espera. A poltrona antiga dá o retoque final ao ambiente intemporal e o espelho imediatamente atrás espreita ciumento mas não se impõe. Mais um gole. Mais uma vez o meu olhar na porta. Continuo à tua espera.

Mas não te iludas. Nesta espera, não és mais que um holograma, a que conscientemente dedico um prenúncio de paixão futura guardada para quem ainda não chegou...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ferreira Leite e a sua Ditadura Comunista

É a segunda vez que vou dar uma ligeira roçadela em aspectos políticos aqui na Toca (no sentido que tem sido atribuído à palavra "política" em Portugal).

Realmente, existem aqui duas possibilidades: ou a política desce a um nível cada vez mais baixo ou cada vez tenho maior percepção dessa baixeza (como quando somos pequeninos e vemos, por exemplo, uma estátua perdida algures numa aldeia que nos parece enorme, mas depois, ao revisitar o lugar passado alguns anos, parece tão pequena...). Uma coisa é certa: o modo como se tem feito política é ignóbil!

Gastam-se milhões em campanhas que em nada contribuem para melhorar o país e que em nada informam os portugueses, servindo apenas para propagandear aquilo que todos querem ouvir: baixar todos os impostos, subir todos os ordenados, subir o salário mínimo nacional, aumentar os subsídios e apoios, yada, yada... Claro, é clássico. Como se diz vulgarmente com aquele tom de descrédito, impossível de reproduzir aqui: "Promessas, promessas...". Contradições descaradas que são vis, principalmente quando atiradas à populaça, que se lhes agarra com unhas e dentes, em esperanças vãs que acabam sempre destruídas.

Mas a principal motivação que me leva a escrever este post, resulta essencialmente da minha mesquinhez reconhecida de desejar fazer escárnio de Manuela Ferreira Leite. Claro que quando é a própria que me oferece ingredientes para isso, tenho um prazer especial em colmatar esse apetite e sinto-me deleitada perante semelhante acepipe que é, nem mais nem menos, que a seguinte equação baseada em duas citações desta senhora:

"Não sei se não era bom seis meses sem democracia" (1) - de onde se pode inferir: ditadura
+
"Façam política com as pessoas" (2)
=
Ditadura Comunista???

Ora bem, das duas uma: Ou a senhora não sabe no que acredita e cai em contradições, tornando ainda mais grave a sua candidatura ao governo (antes um político um pouco corrupto convicto das suas ideias - verdadeira definição de Sócrates, para mim...) ou então se calhar decidiu passar para uma frente de extrema esquerda e esqueceu-se de avisar o país...

(1) Jornal de Notícias aqui (também não é o meu jornal preferido, mas...)
(2) Outdoor de Campanha Eleitoral sobejamente conhecido, aqui

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

"Como nunca vi..."

Apesar da escassez desse recurso tão importante que é o tempo, não posso deixar de comentar, aqui na Toca, a minha indignação perante o programa que a SIC está a apresentar neste momento. “Como nunca os viu”, é o título desse verdadeiro escarro televisivo. A tendência que a comunicação social tem para se imiscuir na vida pessoal dos políticos, é um monstro que tem desenvolvido cada vez mais, e mais poderosos, tentáculos, sempre na esperança de violar a privacidade dos candidatos eleitorais. O assunto não é novo, contudo, deixa-me ouriçada cada vez que surge, merecendo pois um breve registo.

Liguei a televisão numa necessidade premente de uma breve pausa e no meio de um zapping infundado encontrei ocasionalmente Francisco Louçã. Rapidamente me apercebi que se encontrava em sua casa. Arregalei então os olhos ante as maléficas ventosas das questões colocadas, que eram de um “cor-de-rosa” demasiado fluorescente para os meus ouvidos. Certa parte deste diálogo tentacular foi qualquer coisa como:

“- O Francisco Louçã chora?

- Sim, choro, em algumas situações como a morte de familiares, por exemplo.

- E com histórias de amor? Chora?

- Sim, algumas histórias de amor podem fazer-me chorar. Por exemplo, o ET é um filme extremamente romântico.”

Então entre tantas questões que seriam relevantes em vésperas de eleições, numa perspectiva política ou profissional (só isso faria sentido), A COMUNICAÇÃO SOCIAL OCUPA-SE DOS ROMANCES DOS POLÍTICOS?

Ah, claro! Isso é que é importante! É o que mais sobe as audiências, excelentes jornalistas… E o pior é que há uma imensidão de público sedento deste tipo de informação, que alimenta as suas vidas com os dejectos radioactivos deste monstro, transformando-se numa massa abjecta cada vez menos racional. Mais um pouco e, num acesso de irracionalidade primária, poderíamos ter um sistema eleitoral baseado na dimensão do falo dos candidatos… O que na verdade, no presente caso até poderia ser positivo, pois digamos que colocaria Manuela Ferreira Leite em sérias dificuldades… Penso eu!

Valeu no programa, o facto de o Francisco Louçã ter uma enorme destreza mental que lhe permitiu esquivar-se habilmente às ventosas das questões colocadas.

Bem, como o assunto não merece nem mais um segundo da minha atenção (e os meus picos já não estão tão eriçados), encerro-o de imediato.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Carta para... "Para Alguém"

“ Queria escrever-te, mas uma pequena SMS não consegue estancar a fluidez de tudo isto…”. Qual seiva, a inspiração percorre o meu corpo provocando-me uma ténue levitação no espírito, que se eleva, equilibrando-se em sinopses para espreitar além do muro que rodeia o espaço do sonho.

“Estou no meu cantinho do mundo, aqueles m2 que por mais que percorra, são meus (ainda que a via pública não me pertença por direito…)!” É daqui que te escrevo. Da Avenida, o lugar onde pertenço. Não preciso de um papel que me entregue este chão, porque é meu e teu e de todos… A Terra não pertence a ninguém, passo a citar o velho índio Seattle, quando em 1855, escreveu uma carta lá para os lados das Américas (onde te encontras neste momento): "Como podeis comprar ou vender o céu, o calor da Terra? A ideia não tem sentido para nós. Se não somos donos da frescura do ar ou o brilho das águas, como podeis querer comprá-los?". É por isso que este cantinho é meu. E de todos. Assim como o são, todos os cantos do Mundo que desejava conhecer.

“Escrevo-te cartas que não vais ler… Inevitável hábito de segredar ao papel, em primeira mão, o que na verdade queria dizer aos outros”. Impossível de evitar. É como se a caneta (ou neste caso o teclado) se apoderasse das minhas mãos, provocando-me um debitar de palavras que procura acompanhar o ritmo galopante das ideias. Por vezes sou escrava do pensamento e da linguagem do papel, não conseguindo um pouco de paz enquanto não concretizar o vício. Hoje é um desses dias. Acontece-me amiúde, para falar com franqueza. Porém raramente permito que os resultados transpareçam para o exterior. O grande problema é que assim, apenas o meu pequeno Moleskine está a par da minha pessoa. E nem isso, dada a sua natureza inanimada. É desta forma que, a maior parte do que escrevo, habita apenas em mim, embora no fundo, gostasse muito de partilhar. Reencontrar-te, avivou-me ainda mais a vontade de gritar ao mundo. Esta já iniciou a sua germinação há muito, aproximando-se cada vez mais da superfície e começando a despontar no momento em que a Ouriça saiu da toca.

Cantas exprimindo o que sentes. Possivelmente até à exaustão, muitas vezes. Até que os poemas perdem o significado e tens de reler como quem lê pela primeira vez, para que o que escreves possa voltar a ser parte de ti. Eu, contrariamente, escrevo e guardo só para mim. Até que os papéis se difundem entre tantos, até que me esqueço do que tinha para dizer. Quando encontro releio. Só para não perder aqueles fragmentos de vivências que gosto de guardar.

“Será um curioso antagonismo entre nós? Talvez não, talvez as nossas amplitudes somadas até dêem um ângulo recto.”

terça-feira, 23 de junho de 2009

Saída da Toca

A Ouriça decide finalmente pôr a sua cabeça fora da toca, espreitando o que a rodeia numa desconfiança curiosa, fundamentada em argumentos válidos, apresentados por personagens variadas, nos mais diversos contextos. Sente uma enorme vontade de mostrar um pouco do seu mundo ao mundo.

Espreita por entre as ervas e cogumelos que crescem aqui e ali pontualmente, formando padrões atípicos, tão típicos na natureza. O céu, de um cinzento tenebroso e melancólico de fim de tarde invernosa, intimida-a. Uma gota de água fria cai-lhe em cheio na ponta do nariz rosado, arrepiando os seus picos que se eriçam, sem pudor, em todas as direcções. Receosa e hesitante, encolhe-se de novo no calor confortável da sua toca. Um trovão ribombante e cavo ecoa então num repente, anunciado por um relâmpago que rasga o céu com todas as suas forças. O sobressalto da Ouriça materializa-se num pequeno salto recuante e num pensamento rápido: Isto está agreste. No entanto, decide finalmente sair, cada vez mais confiante.

Começa então a ensaiar pequenos passos de uma dança tímida, sob o olhar de um céu reprovador, que insiste em chorar sobre os seus picos. Mergulha numa alegria bela e hipnótica. Os passos, anteriormente tímidos, transformam-se numa dança crescente. Na atmosfera húmida e melancólica, onde pairam notas de jazz inventadas por grilos, agita os seus bracitos inocentes e saltitando, gira sobre si mesma. Cansada, esboça finalmente um sorriso e por fim atira-se para as ervas rasteiras, que a recebem de folhas abertas, num contemplar enternecido da copa frondosa que se encontra sobre si. Vamos lá então reflectir um bocado...