terça-feira, 10 de agosto de 2010

Dualidades

A secretária onde me sento diariamente encontra-se defronte da janela, apresentando-me a estação de S-bahn num ângulo pictórico que me relembra a liberdade de partir ou ficar (mediante a minha vontade e algumas condicionantes), enquadrada pelo ornato de uma moldura verde de Costela-de-Adão, cuja lasciva pose sobre a mesa se poderia dizer quase promiscua.

Aqui cheguei, mais uma vez, munida da minha enorme "mala de cartão". De facto, as diferenças entre a actualidade e a realidade vivida nos anos 60 parecem-me significativas e simpatizo com o antagonismo da "mala de cartão" por oposição a diplomas e certificados, já de resto estabelecido pelos prismas de diferentes autores. Não pretendo propriamente repeti-lo, contudo deposito aqui de certa forma o meu testemunho, constatando-o pelas vivências da minha pessoa. No entanto, no meu caso particular, dadas as condições de Portugal e mudando ligeiramente a posição do holograma, é também possível observar, de certa forma um paralelismo, que sei dever-se apenas à parvoíce sardónica que subitamente me inundou a mente, sendo possível mencionar que além do diploma, a minha mala é literalmente de cartão porque foi comprada numa dessas "lojas do chinês" que tão depressa proliferaram no nosso país. Não fossem os olhos azuis ucranianos e as pernas bronzeadas brasileiras, a, de certo modo, equilibrarem o número de olhos em bico e Portugal poder-se-ia considerar a "China-Town" europeia.

Pois que, eu não tenho absolutamente nada contra as migrações. Tão-pouco me considero xenófoba ou racista. Aceito todas as etnias com prazer, sendo que apenas conheço uma raça: a humana. Como poderia ter algo contra as migrações ou etnias, se eu própria me encontro emigrada na Alemanha e a trabalhar numa empresa internacional, que de facto prima pela diversidade de pessoas que emprega? Numa perspectiva que classificaria como portuguesa, vejo nisto uma beleza singular: a beleza da existência de pessoas de grande diversidade a trabalhar para um objectivo comum, que é ainda ampliada pelo facto de a empresa trabalhar na área do ambiente e sustentabilidade e portanto pretender contribuir assim para um mundo melhor (pelo menos supostamente, mas isso será outra história ou, considerando a natureza da presente publicação, talvez outro post...). Numa perspectiva que se poderia facilmente considerar alemã, é eficiente ter diferentes pontos de vista, sendo que a diversidade cultural enriquece um país, promovendo o debate e eventualmente o desenvolvimento de soluções inovadoras.

Portugal, contudo, tem uma atitude que me deixa apreensiva face a estes ditos fluxos populacionais: este país nos últimos anos tem estado claramente a exportar os seus jovens potencialmente promissores porque não tem capacidade para os receber no mundo de trabalho. Empreguei aqui a expressão exportar porque de facto creio que de certa forma se pode considerar a existência de um fluxo de troca, que se traduz em pessoas de qualificações reduzidas. Esta é uma questão que considero extremamente complexa do ponto de vista social. Em oposição ao nosso pequenino rectângulo, a Alemanha tem as portas abertas cada vez para mais pessoas de todo o mundo. Contudo, li no dia 28 de Junho, que responsáveis do partido conservador da chanceler alemã, Angela Merkel, defendiam a exigência de testes de inteligência aos candidatos a imigrantes na Alemanha (Jornal diário alemão Bild).

Esta notícia deixou-me boquiaberta, sendo que de imediato, confesso que que a ideia que se constituiu no meu pensamento foi a de uma elite que já não se baseia em raças (como será desnecessário mencionar que já aconteceu na Alemanha, mas também noutros países) mas sim em inteligência. Criar um país de elite baseado em inteligência é uma perspectiva aterradora que se opõe a tudo aquilo em que acredito. Por outro lado, qual será o rumo de Portugal se a sua população não for qualificada?

Estas são questões que coloco para as quais não vislumbro solução. As guerras travadas actualmente nesta sociedade global já não assumem nacionalidades, tendo como campo de batalha a bolsa e os indicadores económicos, sendo que a agressividade não deixa de ser imensa, ainda que geralmente oculta sob um manto verde e azul de relatórios de sustentabilidade e acções ditas de responsabilidade social.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Ousadia d´"Os Bichos"

Oculta na vegetação arbustiva que impera descuidadamente no quintal, por entre vasos fendidos, ramagens secas e violetas pintadas aqui e ali, avista as mechas cor-de-laranja de um alvo perfeito. Está mesmo ali, perto da velha fonte em forma de mulher, que com a sua tez marmoreácea e as suas humildes vestes de musgo e líquens, a observa com olhar inexpressivo. Um calafrio percorre o seu corpo esguio arrepiando os seus pêlos curtos desde o pescoço até à ponta da cauda. Num espasmo involuntário atira as pequenas orelhas para trás. Estado de alerta. Tão alerta... Saltita nas patas, como quem se aninha entre almofadas, preparando o terreno para o sonho. No seu corpo tenso mas confortável, prepara-se para saltar, arqueando a coluna felina. Ele não a vê, ela tem consciência disso. Entende que tudo é uma questão de conquista. Que entusiasmo! Ainda que não o saiba descrever, sente a adrenalina a percorrer cada uma das suas artérias e um vago latejar nas têmporas que a deixa num estado quase ébrio. Com a ponta da língua humedece o nariz e a região que envolve as mandíbulas num esgar delirante face ao desafio. O seu olhar mantém-se suspenso no alvo, numa corda quase visível, que de bamba pouco tem. Trapézio com rede de teias de aranha.

Num repente, lança-se em pleno salto livre de hesitações, atirando-se à vítima. Unhas de fora, boca arrepanhada, não tem pudor nem limites e espera uma resposta equivalente. Contudo, de troco recebe apenas duas ou três patadas frouxas. Soergendo-se, coloca uma das patas sobre a garganta da vítima, esperando revolta. Mas constata uma tentativa de resposta frustrada por lacunas que a sua vítima infelizmente não consegue colmatar. Alivia a pressão exercida sobre a garganta do animal. Nunca o quis magoar ou matar, apenas fazer com que este se revelasse. Porém nada acontece. Retira a pata da garganta da vítima e bate-lhe num "Então? Levanta-te!". A vítima não se move, revelando-lhe num olhar assustado tudo o que ela precisa de saber.

Sabe que nesse caso será impossível. Recolhe as garras, dando à vítima uma patada leve em tom de "Pronto, está tudo bem. Vai lamber as feridas e tratar de ti". Afasta-se vagarosamente com a cabeça próxima do chão, virando as costas num genuíno pesar, com o sabor acre e ansioso da incerteza associada ao desvio-padrão de um futuro mais ou menos feliz.