quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Alburrica

Mais uma noite. Pessoas em estilo festivo-decadente seguram copos plásticos de cerveja borbulhante, rodeando o portal para a outra dimensão. Confiante para lá me dirijo.Toco à campainha. No instante seguinte, surge o rosto conhecido do velho boémio que já esperava encontrar. Espécie de messias da noite, em calças castanhas e camisa branca de botões abertos, exibindo o típico cordel de ouro com crucifixo em metal correspondente. Pele curtida com textura de quem já viveu demais e no entanto, não tudo ainda. O cabelo, disciplinado por gel ou produto semelhante, permanece colado ao coro cabeludo enquanto patilhas mal orientadas se rebelam lateralmente. Cinquenta e tal anos, provavelmente bem bebidos, que se reflectem em micro-derrames nas bochechas encovadas. Sorrio e ele devolve-me um sorriso mais pequeno à laia de troco. Entro no pequeno átrio onde vislumbro um quadro espelhado. Olho discretamente ao passar, procurando a minha figura atrás do piroso contorno de uma mulher com vestes dos anos 20. Estou bem? Sim, pelo menos assim parece, num olhar rápido... É o que interessa e não tanto a confusão interior, que felizmente é invisível aos olhos da mulher dos anos 20, emoldurada em dourado rococó. Defronte à entrada está o DJ, alimentando os vários pares de tímpanos com o habitual punk-rock dos anos 70.

Entro e olho em redor, observando os presentes. Não está cá. O balcão é mesmo ao lado da mesa de mistura e é para lá que os meus pés se dirigem. Do outro lado, a barmaid do costume, com o seu visual retro em plena harmonia com a envolvente. Olhar misterioso, cabelo comprido e franjinha curta traçada a régua e esquadro. Túnica azul e calças justas perfilam-lhe a silhueta fina. Olha para mim num sorriso de "Olá, estás boa?" e pergunta-me: "O costume?". Sim, o costume, claro. Abrimos juntas a garrafa e a carteira realizando-se assim o ritual da transacção. Dançar. Sex Pistols, The Clash e outros dentro do género. A visão do mundo em rápidas sucessões de frames indica-me que tudo está bem. Bem demais. Sorrio, mas o olhar foge-me involuntariamente para a porta e continuo à espera.

Neste exíguo espaço, não há lugar para manchas de pessoas, pois todos são tão diferentes que conservam sempre a sua individualidade. Aprecio muito essa característica permitida em tão poucos lugares. Pequeno ecossistema underground confinado por paredes claustrofóbicas, tecto baixo, e longas noites de fim-de-semana, em que cada um tem um papel que é apenas seu. Continuo à espera. Chão de tijoleira envernizada. Paredes forradas a papel bordeaux e branco oferecem suporte a candeeiros de décadas passadas que contribuem com a sua meia-luz, tão importante na criação daquela atmosfera. Mais abaixo, bancos forrados a veludo bordeaux condizente com o papel das paredes, correm ao longo das mesmas, conferindo aconchego suficiente a malas, casacos e pessoas que se amontoam por ali, apenas interrompidos por suportes rectangulares para copos e cinzeiros. Pequenas mesinhas e bancos quadrados dispõem-se um pouco à frente, esperando receber copos e corpos meios. Dirijo o olhar à porta, desta vez voluntariamente, e continuo à espera. A poltrona antiga dá o retoque final ao ambiente intemporal e o espelho imediatamente atrás espreita ciumento mas não se impõe. Mais um gole. Mais uma vez o meu olhar na porta. Continuo à tua espera.

Mas não te iludas. Nesta espera, não és mais que um holograma, a que conscientemente dedico um prenúncio de paixão futura guardada para quem ainda não chegou...