quarta-feira, 26 de maio de 2010

Ousadia d´"Os Bichos"

Oculta na vegetação arbustiva que impera descuidadamente no quintal, por entre vasos fendidos, ramagens secas e violetas pintadas aqui e ali, avista as mechas cor-de-laranja de um alvo perfeito. Está mesmo ali, perto da velha fonte em forma de mulher, que com a sua tez marmoreácea e as suas humildes vestes de musgo e líquens, a observa com olhar inexpressivo. Um calafrio percorre o seu corpo esguio arrepiando os seus pêlos curtos desde o pescoço até à ponta da cauda. Num espasmo involuntário atira as pequenas orelhas para trás. Estado de alerta. Tão alerta... Saltita nas patas, como quem se aninha entre almofadas, preparando o terreno para o sonho. No seu corpo tenso mas confortável, prepara-se para saltar, arqueando a coluna felina. Ele não a vê, ela tem consciência disso. Entende que tudo é uma questão de conquista. Que entusiasmo! Ainda que não o saiba descrever, sente a adrenalina a percorrer cada uma das suas artérias e um vago latejar nas têmporas que a deixa num estado quase ébrio. Com a ponta da língua humedece o nariz e a região que envolve as mandíbulas num esgar delirante face ao desafio. O seu olhar mantém-se suspenso no alvo, numa corda quase visível, que de bamba pouco tem. Trapézio com rede de teias de aranha.

Num repente, lança-se em pleno salto livre de hesitações, atirando-se à vítima. Unhas de fora, boca arrepanhada, não tem pudor nem limites e espera uma resposta equivalente. Contudo, de troco recebe apenas duas ou três patadas frouxas. Soergendo-se, coloca uma das patas sobre a garganta da vítima, esperando revolta. Mas constata uma tentativa de resposta frustrada por lacunas que a sua vítima infelizmente não consegue colmatar. Alivia a pressão exercida sobre a garganta do animal. Nunca o quis magoar ou matar, apenas fazer com que este se revelasse. Porém nada acontece. Retira a pata da garganta da vítima e bate-lhe num "Então? Levanta-te!". A vítima não se move, revelando-lhe num olhar assustado tudo o que ela precisa de saber.

Sabe que nesse caso será impossível. Recolhe as garras, dando à vítima uma patada leve em tom de "Pronto, está tudo bem. Vai lamber as feridas e tratar de ti". Afasta-se vagarosamente com a cabeça próxima do chão, virando as costas num genuíno pesar, com o sabor acre e ansioso da incerteza associada ao desvio-padrão de um futuro mais ou menos feliz.